Sonhando uma Dúzia de Sonhos

O que faz o aconselhamento bíblico ser bíblico?
Quando falo em várias partes do País sobre aconselhamento bíblico, algumas vezes as pessoas me perguntam: “Quando você diz ‘aconselhamento bíblico’, você não está querendo dizer__________, não é?”. As pessoas preenchem esse espaço com diferentes rótulos negativos − no seu entender. Que vergonha pensar que colocarmos o adjetivo “bíblico” após a palavra “aconselhamento” faz com que alguns cristão recuem amedrontados. Mas tenho boas notícias, a maré está virando. As caricaturas distorcidas e os estereótipos falsos do aconselhamento bíblico estão a caminho de serem substituídos por retratos do aconselhamento com fundamento nas Escrituras e historicamente precisos, verdadeiramente bíblicos e atraentes (Tt 2.10).  Embora ninguém possa dar a definição final e oficial de aconselhamento bíblico, ofereço um resumo do meu entendimento a respeito do aconselhamento bíblico para sua consideração.

O aconselhamento bíblico centrado em Cristo, com base na Igreja, abrangente, compassivo e culturalmente informado, depende do Espírito Santo para estabelecer a relação entre a verdade inspirada de Deus sobre as pessoas, os problemas e as soluções para o sofrimento humano (mediante o cuidado cristão das almas que conforta e cura) e para o pecado (mediante a orientação espiritual cristã que reconcilia e dá direção) a fim de capacitar as pessoas para que exaltem e sirvam a Deusencontrem prazer em Deus e amem seu próximo (Mt 22.35-40), cultivando a conformidade com Cristo e a comunhão com Cristo e a Igreja.
Dada esta definição operacional, acompanhe-me na visão de um amadurecimento da natureza e da forma do aconselhamento bíblico − doze sonhos de um futuro possível para o aconselhamento bíblico.
1. O aconselhamento fundamentado nas Escrituras
O aconselhamento bíblico se agarrará tenazmente à supremacia, suficiência e profundidade da sabedoria das Escrituras. Deus nos deu tudo quanto precisamos para viver de maneira piedosa (2Pe 1.3). As Escrituras, corretamente interpretadas e aplicadas com cuidado, oferecem insight completo para o nosso viver.
A Bíblia fornece as categorias de interpretação para darmos sentido à vida do ponto de vista de Deus. Ao construirmos a nossa abordagem de aconselhamento sobre o Evangelho da graça de Cristo, obtemos a sabedoria para levarmos às pessoas a esperança de cura, o incentivo para a mudança (a glória de Deus) e a compreensão da motivação humana que agiliza as mudanças que honram a Deus (2Tm 3.15-16).
2. O aconselhamento teológico
O aconselhamento bíblico estabelecerá um elo entre a criação, a queda e a redenção. Ao estudar a teologia bíblica da criação, o aconselhamento bíblico examinará as pessoas − o projeto original de Deus para a alma (antropologia). Ao perscrutar a queda, o aconselhamento bíblico examinará os problemas − como o pecado trouxe a depravação pessoal e o sofrimento (hamartiologia). Ao investigar o ensino da Bíblia sobre a redenção, o aconselhamento bíblico examinará as soluções/curas − o Evangelho da graça de Cristo, que oferece a salvação eterna e nos dá a vitória diária na batalha contra o mundo, a carne e o diabo (soteriologia). Quando os modelos de aconselhamento bíblico começam e terminam na queda, eles acabam por se concentrar quase que exclusivamente na depravação humana. Como resultado, eles aconselham os cristãos como se estes ainda não fossem salvos, deixando de considerar a justificação, redenção, regeneração e reconciliação pela obra de Cristo (Rm 5.1-8.39).
A psicologia é inerente à nossa fé. Não a psicologia secular, mas a psicologia bíblica, ou seja, o entendimento da alma e o ministério dirigido à alma conforme ela foi projetada inicialmente por Deus, corrompida depois pelo pecado e redimida pela graça. A criação diz respeito à psicologia bíblica − o estudo bíblico da alma. A queda explica a psicopatologia bíblica − o estudo bíblico da doença do pecado. A redenção prescreve a psicoterapia bíblica − o estudo bíblico da cura da alma, proporcionado por Deus em Cristo. No entender de algumas pessoas, o uso destes termos não é válido. Como é triste o fato de termos permitido que o mundo roubasse estes termos consistentemente bíblicos/teológicos/históricos. Em 1861, portanto antes do advento da psicologia secular moderna, Franz Delitzsch observou que “a psicologia bíblica não é uma ciência recente. Ela é uma das mais antigas ciências da Igreja”. É tempo de resgatarmos a nossa herança, recuperarmos e redefinirmos estes termos (Cl 2.1-15).
3. O aconselhamento histórico
Lembro-me vividamente e com tristeza das “guerras do aconselhamento” que aconteciam na época em que eu estava no seminário − guerras em que os “fronts” da psicologia moderna combatiam uns contra os outros. Também me lembro de pensar: “Com certeza, a Igreja sempre ajudou as pessoas feridas e endurecidas”. Essa frase remeteu-me à busca, por um quarto de século, do legado cristão para o cuidado da alma e a orientação espiritual. Simultaneamente, o Espírito de Deus movia muitos outros pelo mesmo caminho.
O futuro do aconselhamento bíblico é o passado. Durante os últimos vinte anos testemunhamos na comunidade cristã o retorno ao devido respeito pela “grande nuvem de testemunhas” (Hb 12.1-3). A história, conforme Chesterton nos lembrou, “é a democracia dos mortos”. Os conselheiros bíblicos do futuro voltarão aos caminhos antigos (Jr 6.16). Eles buscarão e aplicarão o legado antigo e a sabedoria de vida encontrada de maneira consensual nos escritos dos cristãos que, ao longo da história, destacaram-se como médicos da alma.
4. O aconselhamento positivo 
O aconselhamento bíblico deixou-se enredar, às vezes, pela negatividade e pela crítica mordaz, a proteção de um território, a construção de trincheiras e a ideia de ser essencialmente “contrário”. Isso não é aconselhamento bíblico; isso é “aconselhamento de Corinto” (1Co 1.10-17), uma caricatura carnal da verdade.
No futuro, o aconselhamento bíblico será conhecido como “aconselhamento bereano” (At 17.11). Os conselheiros bíblicos terão uma mente crítica sem o espírito crítico. Eles buscarão enfatizar de maneira positiva o entendimento correto da Palavra (2Tm 2.5) e serão capazes de interagir de forma graciosa com aqueles dos quais discordam e de enfatizar com atitude positiva que toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para a educação na justiça (2Tm 3.16).
5. O aconselhamento relacional
No futuro, as raízes trinitárias da nossa fé florescerão à medida que os conselheiros bíblicos forem conhecidos pelos seus frutos − frutos de compaixão e paixão (Jo 1; 17). A exemplo da eterna e íntima comunhão em unidade do Deus da Bíblia, os conselheiros bíblicos descartarão o distanciamento em favor daquilo que um de meus amigos afro-americanos descreve como “aconselhamento natural e real”.
Ainda que sem ignorar as técnicas, as habilidades e as ferramentas do aconselhamento competente, a ênfase estará no relacionamento de alma para alma (1Ts 2.8). O aconselhamento bíblico não privilegiará o método diretivo nem o método não diretivo. Pelo contrário, praticará o aconselhamento colaborativo, no qual o conselheiro, o aconselhado e o Divino Conselheiro formarão uma relação triangular moldada pela Palavra de Deus e conduzida pelo Espírito de Deus.
6. O aconselhamento relevante
Não basta promovermos a suficiência da Palavra se também não ministrarmos de forma que demonstre a relevância da Palavra de Deus. Os problemas da vida que a maioria das pessoas rotula como “transtornos psicológicos”, curáveis apenas por meio das “metodologias psicológicas”, serão vistos como espirituais, relacionais, mentais e volitivos, e as questões emocionais abordadas conforme o Livro da Vida, do Autor da Vida, para que possamos viver em abundância (Jo 10.10).
O estereótipo pejorativo “tome dois versículos e me telefone manhã para dar notícias” será substituído pela identidade construtiva −   “a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Quando as pessoas pensarem no conselheiro bíblico, pensarão em “Jesus personificado” e encontrarão palavras de esperança como, por exemplo, “Vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28).
7. O aconselhamento transformador
O aconselhamento bíblico aplicará à vida diária dos crentes os princípios da santificação progressiva (2Co 3.16-18) mediante a formação espiritual, que cultiva a comunhão com Cristo e a conformidade com Cristo pela prática das disciplinas espirituais bíblicas/históricas, individuais e corporativas. Historicamente, os campos do aconselhamento bíblico e da formação espiritual constituíam uma unidade. É nosso sonho que voltem a ser sinônimos.
O aconselhamento bíblico transformador destacará o papel de Deus e a nossa responsabilidade no crescimento espiritual por meio da sua ênfase no cultivo das disciplinas que nos ligam ao poder da ressurreição de Cristo (Fp 3.10). Ele ressaltará a vida interior por meio da sua ênfase na formação do caráter de Cristo em nós, ou seja, uma vida interior que reflete progressivamente a Cristo. Ele focalizará o corpo de Cristo, incentivando as disciplinas espirituais corporativas e equipando os crentes para as disciplinas espirituais individuais. Isto exigirá o desenvolvimento de uma teologia bíblica abrangente da vida espiritual, que provê a base para uma metodologia bíblica relevante para o crescimento espiritual. O aconselhamento bíblico e a formação espiritual oferecerão uma abordagem teológica e prática da santificação, eficaz no mundo real onde as pessoas alimentam esperanças e sonhos, tropeçam, caem e vivem todos os dias.
8. O aconselhamento abrangente na teoria
O aconselhamento bíblico focalizará a totalidade da natureza humana, criada à imagem de Deus (Gn 1.26-28). Um entendimento bíblico abrangente da imago Dei vê os seres humanos como seres relacionais com capacidades espirituais, sociais e de autoconhecimento, seres racionais que pensam, seres volitivos que escolhem, seres emocionais que vivenciam experiências, e seres físicos que agem.  Os modelos de mudança do aconselhamento bíblico focalizarão cada uma dessas áreas, em uma perspectiva integral da personalidade humana.
O aconselhamento bíblico não negará a complexidade e interação de mente/cérebro e corpo/alma (Gn 2.7), mas levará a sério o papel do cérebro (no mundo caído e no corpo ainda não glorificado) e seu impacto sobre o funcionamento humano saudável (Rm 8.19-25).
9. O aconselhamento abrangente na metodologia
Existe uma divisão infeliz entre as abordagens de aconselhamento que enfatizam o sofrimento e aquelas que enfatizam o pecado. O aconselhamento bíblico lidará tanto com o sofrimento como com o pecado, reconhecendo que a Palavra de Deus é útil para lidar com os males que sofremos e também com os pecados que cometemos. O aconselhamento bíblico oferece consolo para o ferido, bem como confrontação para o endurecido. Ele provê conforto e cura para aqueles que foram vitimados pela vida e também reconciliação e orientação para aqueles que se deixaram enganar por Satanás.
Conforto e cura (cuidado da alma para o sofredor) são termos clássicos na história do cuidado pastoral. Por meio de conforto e cura, os conselheiros bíblicos oferecerão o cuidado consolador de paracleto (Jo 14.15-31; 2Co 1.3-11).[4] Reconciliar e guiar (dar direção espiritual para lidar com o pecado e para a santificação) são termos igualmente históricos.  Deus usará os conselheiros bíblicos para capacitar os crentes arrependidos e perdoados na aplicação dos princípios de crescimento na graça (2Tm 2.24-26).
10. O aconselhamento abrangente na formação do conselheiro
Alguns modelos de formação de conselheiros bíblicos têm a tendência de concentrar no conteúdo (a verdade bíblica), na competência (as habilidades relacionais/técnicas de aconselhamento) e no caráter (a formação espiritual do conselheiro) ou na comunidade (nosso relacionamento como corpo de Cristo). No futuro, o preparo para o aconselhamento bíblico unirá conteúdo, competência, caráter comunidade (Rm 15.14).
Os insights das Escrituras serão aprendidos em um contexto de comunhão na comunidade cristã e aplicados ao desenvolvimento do caráter espiritual do conselheiro em formação. Isso resultará na competência relacional para interagir de alma para alma e impactar profundamente outras vidas para Cristo. Esta abordagem abrangente produzirá médicos da alma em processo de amadurecimento e amigos espirituais que falam a verdade do Evangelho em amor (Ef 4.11-16).
11. O aconselhamento universal 
O apóstolo Paulo sustenta que todos os crentes maduros e equipados são competentes para aconselhar (Rm 15.14).  O aconselhamento bíblico é, portanto, universal. Aconselhamento bíblico é aquilo que o povo de Deus faz na qualidade de amigos espirituais, aquilo que os pastores fazem como médicos da alma e que os conselheiros cristãos fazem como cuidadores.
Em outras palavras, aconselhamento bíblico e aconselhamento cristão são sinônimos. Com certeza, esta ideia deve surpreender alguns e levantar objeções de outros. No entanto, o aconselhamento bíblico é uma mentalidade, uma perspectiva, uma cosmovisão, uma maneira de ver a vida que instrui nossa maneira de compreender as pessoas, os problemas e as soluções.
O aconselhamento bíblico é universal no sentido de que ele molda a nossa visão do universo com base na visão do universo revelada pelo Criador do universo. Todos os conselheiros aconselham com base em alguma cosmovisão.  A Bíblia dá a cosmovisão a partir da qual os conselheiros cristãos ministram.
Isto não significa um jorro de citações de versículos bíblicos enlatados, extraídos da caixa de ferramentas do conselheiro e lançados sobre um aconselhado ou um membro da igreja. Pelo contrário, significa uma conversa espiritual singular, personalizada, com foco na situação e que flui naturalmente, ou seja, o compartilhar adequado e relevante de uma investigação bíblica construída a partir de uma visão abrangente (Ef 4.29).
12. O aconselhamento culturalmente informado
O fato de o aconselhamento bíblico ser universal não exclui absolutamente a verdade de que ele deve ser e será culturalmente informado. Ele combinará em sua cosmovisão universal as perspectivas bíblicas singulares de pessoas de ambos os sexos e de todas as etnias (Ap 7.9-10).
Os insights e práticas do aconselhamento bíblico histórico e atual, provenientes de mulheres e homens cristãos de todas as etnias, contribuirão para a nossa cosmovisão do aconselhamento bíblico (Ef 2.11-22). Tanto o nosso entendimento como a prática do aconselhamento bíblico serão mais esmerados, consistentes e relacionais.
Conclusão: A ousadia de sonhar
Sonho com o dia em que quando eu falar sobre aconselhamento bíblico, alguém dirá com entusiasmo: “Eu sei o que você entende por ‘aconselhamento bíblico’! Você quer dizer o povo de Deus, os pastores e os conselheiros cristãos ministrando uns aos outros de uma forma que é bíblica, teológica, histórica, positiva, relacional, relevante, transformadora, abrangente na teoria, na metodologia e na formação dos conselheiros, universal e culturalmente informada”.
Juntos, faremos desse sonho uma realidade. Desta forma, quando colocarmos o adjetivo “bíblico” após a palavra “aconselhamento”, os amigos espirituais, os pastores e os conselheiros cristãos responderão em alegre expectativa.

Traduzido e usado com permissão do autor. Robert Kellemn é fundador de RPM Ministries, diretor executivo da Biblical Counseling Coalition e um dos líderes espirituais de Cornerstone Community Church, em Hobart – Indiana.
[1] Veja Robert Kellemen, Soul Physicians: A Theology of Soul Care and Spiritual Direction. Winona Lake, IN: BMH Books, 2007, p. 131-141.
[2] Franz Delitzsch, A System of Biblical Psychology. 2nd edition. Eugene, OR: Wipf & Stock, 1861, p. 3.
[3] G. K. Chesterton, Orthodoxy. Whitefish, MT: Kessinger, 2004, p. 3.
[4] Veja Robert Kellemen, Spiritual Friends: A Methodology of Soul Care and Spiritual Direction. Winona Lake, IN: BMH Books, 2007, p. 39-57.
[5] Veja Robert Kellemen and Karole Edwards, Beyond the Suffering: Embracing the Legacy of African American Soul Care and Spiritual Direction. Grand Rapids: Baker Books, 2007. Veja também Robert Kellemen and Susan Ellis, Sacred Friendships: Celebrating the Legacy of Women Heroes of the Faith. WinonaLake, IN: BMH Books, 2009.

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